segunda-feira, 8 de agosto de 2011

POR QUE OS SERVIÇOS CARTORIAIS NA BAHIA SÃO TÃO RUINS?

Augusto Aras

08 de Agosto de 2011

 
Bahia Notícias - POR QUE OS SERVIÇOS CARTORIAIS NA BAHIA SÃO TÃO RUINS? Há uma causa principal?

Augusto Aras - Podemos dizer que a crítica às serventias extrajudiciais nos últimos 40 anos decorre do fato de que na década de 60, e mais ainda a partir da década de 70, ter havido a oficialização das serventias extrajudiciais, que são formadas, a grosso modo, pelos tabelionatos e cartórios de protesto e registro de imóveis. São os principais órgãos que integram a categoria dos notários de registradores públicos. Essa oficialização seria um grande avanço se o Estado, através do Tribunal de Justiça, tivesse revertido essas rendas durante esses anos todos para o aparelhamento dessas mesmas serventias. Como essas rendas, historicamente, vão diretamente para os cofres do Poder Judiciário do Estado da Bahia e não são reinvestidas. O que se viu ao longo desses últimos 40 anos foram cartórios desprovidos de funcionários, em número e em qualificação adequados ao atendimento da demanda. Além da total obsolescência de equipamentos eletrônicos necessários para a documentação, para o arquivamento, enfim, para viabilizar todo processo de formalização das atividades que são o cerne da questão da segurança jurídica a ser conferida pelas serventias extrajudiciais e a certos hábitos que dependem da chancela pública, como a realização de uma escritura pública de compra e venda de imóveis, uma certidão de nascimento, de casamento, o óbito, o testamento, enfim, a uma multiplicidade de atos jurídicos que dependem para sua validade, no Brasil, da participação do poder público através das serventias extrajudiciais .

BN - Enquanto na Bahia há pessoas que dormem na fila do cartório para conseguir realizar procedimentos simples, em Brasília a média do tempo de atendimento é de cerca de cinco minutos. Quando essa realidade será observada aqui?

AA - A partir do momento em que a Bahia se integrar à regra geral que a Constituição impôs, que é a regra da privatização das serventias extrajudiciais. Nós poderemos ver sim, ainda que por delegação do poder público, essas serventias tendo uma gestão privada e com a possibilidade da comunidade, e mesmo dos poderes públicos, cobrarem dos seus titulares a realização dos investimentos necessários para que nós tenhamos pessoal em número suficiente e recursos tecnológicos necessários para que esse serviço se faça com a rapidez necessária.
BN - A Constituição de 88 determina que “a privatização dos cartórios extrajudiciais é uma regra”. Por que a Bahia não seguiu essa orientação e se mantém como o último estado a não ter suas unidades totalmente privatizadas?

AA - Essa é uma questão cultural. A Bahia tem demonstrado uma certa cautela, para não dizer atraso ou leniência. A Bahia tem agido com uma certa demora para lidar com assuntos tão importantes para a sociedade baiana, como é a questão dos cartórios. Somos o último estado da Constituição a ter seus cartórios privatizados e o serviço é caótico. A explicação é essa: a falta de investimento permanente de pessoal e de recursos materiais e tecnológicos para atender o serviço.

BN - Qual o argumento das pessoas que defendem a não-privatização total?

AA - Essa pergunta é tão difícil de responder, porque é quase uma unanimidade pela privatização. Não se encontra no atual quadro da sociedade baiana opiniões contra a privatização. O que existe é uma opinião intermediária, do próprio Tribunal de Justiça, que quer que a privatização se faça de uma forma gradual, ou seja, que primeiro se espere que se vaguem as serventias atuais para que depois elas sejam privatizadas pouco a pouco. Nos parece, e parece a muitos deputados, que isso não vai resolver o problema do caos dos cartórios extrajudiciais da Bahia. Por quê? Porque os atuais titulares ingressaram por concurso público e o Conselho Nacional de Justiça [CNJ], em um processo específico, já apreciou cada provimento por concurso público e já declarou o preenchimento das respectivas titularidades. Então, o que se tem é que, se porventura o pensamento do Tribunal de Justiça vingar, nós teremos mais 20 anos com o problema sem solução. Por quê? Porque a média dos titulares em exercício é de 50 anos. Entre 40 e 50 anos. Considerando que hoje, em um regime de oficialização, cada serventuário é um servidor público do Estado da Bahia, regido pelo estatuto do servidor público, só aos 70 anos será aposentado compulsoriamente. A pergunta que fica é: esse modelo proposto pelo Tribunal sana o sistema caótico ao qual a Bahia está inserida exatamente por conta da ausência do investimento desses recursos oriundos das próprias serventias? Não. E tem um fato grave: o fato mais grave é que a Bahia vem perdendo receita para outros estados do sul. Porque os cartórios de protestos da Bahia não atendem à demanda. Então, hoje em dia, com a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça [STJ}, o cartório de títulos e documentos pode ser feito em qualquer praça. Com isso, a Febraban [Federação Brasileira de Bancos] relacionou uma série de estados considerados praças seguras. E a Bahia não se encontra entre as “praças seguras”, o que siginifica, além de um desprestígio para a unidade federativa que é a quarta maior do Brasil, significa perda de receitas que são desviadas para outros estados, principalmente São Paulo.

BN - A que o senhor atribui a demora dos deputados em votar o projeto de privatização, que é de 2009, tendo em vista que é consenso entre eles que a privatização total é o melhor caminho?

AA - O grande problema é que o projeto originário do Tribunal de Justiça tinha uma forma de tratar do tema, no que toca à privatização, que é exatamente esperar a vacância das titularidades. Ora, como nós já vimos, essa proposta de privatização, nesta modalidade, não atende à realidade da Bahia. Não vai resolver o problema. Estaríamos atrasando a solução em, minimamente, mais 20 anos. E os deputados foram sensíveis aos fatos. E o que há de consenso na Assembleia, embora não unânime, é a consciência de que a privatização deve ser feita de forma geral e imediata. Caminha-se para fazer uma privatização no plano de um escalonamento. Da maneira que os servidores mais velhos, entre 15 e 20 anos, teriam, a partir de 1º de Janeiro de 2012, um ano para fazer a opção. A partir de 2013, quem tivesse entre 10 e 15 anos. A partir de 2014, quem tivesse entre 5 e 10 anos. E a partir de 2015, todos os demais funcionários. Essa regra seria muito positiva porque seria um momento necessário para que houvesse uma readaptação dessas serventias de forma paulatina a um novo regime que ainda não é conhecido na Bahia. Até porque, cada titular dessas serventias teria que, não somente ter condições materiais para dotar esses cartórios de pessoal suficiente, mas acima de tudo treiná-los com novas tecnologias e comprar equipamentos que jamais o poder público baiano permitiu.

BN - No último dia 26, o TJ resolveu abrir concurso sem comunicar a Assembleia (com quem negocia pontos do projeto), para os tabelionatos que estão vagos. A que o senhor atribui essa iniciativa? Trata-se de uma tentativa do TJ, ou da desembargadora Telma Britto, de impor a vontade do Judiciário?

AA - É preciso que nós façamos uma leitura atenta à recomendação do Conselho Nacional de Justiça [CNJ]. O CNJ cobrou a privatização aos poderes públicos. E cobrou porque a Bahia era ainda o único estado da Federação que não estava privatizado. Mas a modalidade, a forma, o modo como se fará esta privatização, será de maneira política pela Assembleia. É verdade que o projeto é da iniciativa do TJ, até mesmo por recomendação do CNJ, mas a Assembleia Legislativa tem autonomia constitucional para disciplinar dentro da privatização, que é o escopo do Projeto de Lei que defende pelo Poder Judiciário da Bahia, a possibilidade de decidir, deliberar o que é de melhor para atender às demandas sociais.
BN - Os deputados espernearam após a abertura desse processo de seleção pelo TJ, e um deles chegou a dizer que essa é a maior crise entre o Judiciário e o Legislativo baiano em mais de um século. Que consequências essa crise pode ter?

AA - Eu não acredito que seja uma crise. Primeiro porque as competências do Poder Judiciário da Bahia e da Assembleia Legislativa decorrem da própria Constituição Federal e da Carta Estadual. Então, não é uma crise. O que se pode entender é que há um momento de um aparente conflito entre instituições que não devem se conflitar. Por quê? Se o próprio Tribunal de Justiça transferiu para a Assembleia, através de um Projeto de Lei de sua iniciativa, para privatizar à luz dos critérios políticos da Casa política que representa o povo da Bahia? Então, não haveria razão para que o próprio Tribunal tivesse se adiantando àquelas medidas políticas legislativas a serem implantadas pelo poder mais legítimo da República, que é o Legislativo. Afinal de contas, quem elege os deputados estaduais é o povo.


BN - A abertura dessas vagas ocorre no momento em que também se discute a extinção de algumas unidades. E se houver mesmo a eliminação de alguns cartórios, como ficam os novos servidores? O que essa decisão do TJ-BA pode acarretar?

AA - Isso é o que causa estranhamento e, talvez, por isso é que os senhores deputados tenham sido tomados por uma ira sagrada. Porque exatamente esses cartórios a serem providos por concurso são os deficitários, que haverão de ser sustentados exatamente pelo Fundo de Compensação, ora, o objeto de criação por parte da Assembleia. Nós temos a compreensão de que essa medida do Tribunal de Justiça, dando uma interpretação benéfica, buscou, quem sabe, adiantar os trabalhos futuros, já que mesmo que se faça o concurso, mesmo que haja a conclusão do concurso, a delegação a ser outorgada aos eventuais aprovados haverá de ser feita pelo governador do Estado da Bahia, e não pelo TJ. De maneira que, essa medida, embora possa parecer que atende contra a autonomia do Poder Legislativo, ela pode também ser interpretada como uma medida de antecipar-se aos fatos.
BN - Não seria uma forma de pressionar?
AA - A pressão fica por conta daquela outra interpretação feita pelos deputados. Talvez a interpretação que eu queira apresentar é uma benéfica no sentido de que, como a outorga da delegação é da exclusiva competência do governador do Estado, e sabendo que o próprio dependeria da criação do Fundo de Compensações para prover essas serventias, vamos beneficamente acreditar que a senhora presidenta [Telma Britto] quis apenas antecipar os fatos para, quem sabe, em um breve passo de tempo, tenhamos o provimento dessas mesmas serventias.

BN - O próprio governador se mostrou preocupado com essa situação, afinal, o TJ vai perder receita e o governo pode ter que arcar com esse valor que gira em torno de R$ 13 milhões...

AA - Mas, na verdade, não há perda nenhuma. A perda haveria se não fosse feita a privatização, se não fosse criado o Fundo de Compensação, se o governador tivesse que fazer outorgas das delegações das serventias extrajudiciais sem que a Assembleia votasse o projeto criando esse fundo. Por quê? Os próprios técnicos dos tribunais de Justiça dispõem de elementos suficientes para ter a convicção de que a privatização, em qualquer modalidade que não seja a proposta pelo TJ, será positiva para o governo do Estado, que não terá que arcar com nenhum despesa. Também para o próprio Tribunal de Justiça, que terá um incremento de receita da ordem de R$ 165 milhões já em 2012, para a própria sociedade, que terá, a partir de 2012, condições de ter serviços de melhor qualidade, rapidez, eficiência e também de moralidade. Além disso, a possibilidade de os titulares terem condições de ganharem melhor. Hoje os nossos serventuários extrajudiciais são servidores públicos do Estado da Bahia. Todos recebem vencimentos. E esses vencimentos são vencimentos que observam certos limites legais.
BN - Quais são os cartórios que terão que contribuir com o Fundo?

AA - Só com os cartórios rentáveis. Os não rentáveis irão receber repasses justamente da contribuição dos mais rentáveis.
AA - Agora, no aspecto de moralidade, é fundamental que se diga: o que é que nós temos na Bahia no que toca às receitas? Hoje paga-se R$ 1,80 para reconhecer uma firma, o que seria muito barato. Ocorre que, para que alguém pague isso, tem que pagar mais R$ 50 para que um intermediário ou um despachante possa conseguir esta proeza de obter o reconhecimento de uma firma. Isso é muito comum e isso não se pode imputar aos titulares das serventias. Isto é a deturpação do sistema. Ou seja, uma tabela de taxas, que é a quarta menor do país, se torna a mais cara do planeta quando se cobra R$ 50 para que alguém obtenha sua realização. E o pior: propicia a informalidade, colocando um imenso número de pessoas que vivem desse dinheiro, que não é lícito, não é imoral, estimulando condutas econômicas marginais. Então, precisamos trazer todas essas receitas para o campo da formalidade e, com isso, efetivamente integrar a Bahia ao resto do Brasil.

BN - O projeto será votado, se não for adiado novamente, no dia 30. Então, você aposta na aprovação do projeto do jeito que a maioria dos deputados quer?

AA - Eu aposto que a comissão, que conhece já a realidade de outros estados da Federação, possa extrair dessa experiência obtida lá os melhores resultados para atender à demanda da sociedade baiana e acabar de vez com o tormento que é para se autenticar uma simples fotocópia. A partir de 2012, creio eu, será o início de um novo regime para as serventias extrajudiciais da Bahia. Espero que os nossos deputados sejam sensíveis a uma realidade que somente a Bahia ainda está excluída. Do cumprimento da lei maior do país, no que toca as serventias extrajudiciais.

"Se porventura o pensamento do Tribunal de Justiça vingar, nós teremos mais 20 anos com o problema sem solução."

"Essa é uma questão cultural. A Bahia tem demonstrado uma certa cautela, para não dizer atraso ou leniência."

"Não é uma crise (entre AL e TJ). (...) Há um momento de um aparente conflito entre instituições que não devem se 
conflitar."

"Isso (abertura de concurso para cartórios) é o que causa estranhamento e, talvez, por isso é que os senhores deputados tenham sido tomados por uma ira sagrada."

"Na verdade, não há perda nenhuma. A perda haveria se não fosse feita a privatização, se não fosse criado o Fundo de Compensação."

"Uma tabela de taxas, que é a quarta menor do país, se torna a mais cara do planeta quando se cobra R$ 50 para que alguém obtenha sua realização."

Por João Gabriel Galdea

ANTÔNIO AUGUSTO BRANDÃO DE ARAS
(AUGUSTO ARAS)
Mestre em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA);

 - Doutor em Direito do Estado (Direito Constitucional) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC);

 - Procurador Regional da República com atuação no Tribunal Regional Federal da 1a Região;

- Subprocurador-Geral da República substituto (Portarias PGR 552/2008 e 647/2008);

- Representante do Ministério Público Federal no CADE;

- Professor Adjunto de Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB);

-  Professor da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU);

- Presidente da Comissão Nacional de Direitos Difusos e Coletivos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;

- Advogado;

- Autor das obras “Fidelidade Partidária: A Perda do Mandato Parlamentar”, Lumen Juris, 2006 (STF, MS 26.603) e a “A Causa nos Contratos” (prelo).

Fonte: Bahia Noticia


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